
De braços abertos, pendurada em cordas e em redes, a rastejar a cara na lama, a transportar troncos às costas ou nos ombros e a subir uma rampa até tocar no botão numa prova ao estilo do American Ninja Warrior.
A pequena e franzina Mafalda Nogueira, 19 anos e exatos 1,60m de altura, quer escrever o seu nome em letra grande no Campeonato Europeu de OCR (OCR European Championships), a decorrer de hoje até 29 junho, no Estádio do Jamor, Oeiras.
Na estreia de um palco português na rota europeia de corrida de obstáculos (Obstacle Course Racing) a atleta do Grupo Recreativo Gonçalvinhense, de Mafra, promete atacar o pódio.
Em quatro dias, fará cinco provas: OCR 100m, a tal cópia do Ninja Warriors, Short Course (3km), Standard Course (15km); OCR 100m team relay (prova estafeta com Diana Santos, Francisco Estrela e Henrique Antunes) e National team race (prova equipa feminina ao lado de Eugénia Martins e Leonor Rocha).
Carregar bolas, pneus, baldes e suspensos no ar
“O OCR é uma modalidade muito completa. Temos obstáculos de força, como carregar bolas, pneus, baldes e tudo e mais alguma coisa que nos deem”, explica.
Mas não só. Outros obstáculos desafiam outras forças para além da medição de força. “Temos obstáculos de agilidade, precisão, suspensão, são os que dão mais show e em que andamos pendurados, suspensos no nosso próprio corpo, normalmente só com as mãos, mas às vezes podemos usar os pés”, continua a jovem superatleta.
“Não há limites, não há obstáculos estandardizados. Todos os dias estão constantemente a inventar coisas no OCR”, adianta, à conversa com o Sportinforma.

O rol é extenso. Para quem não consegue visualizar, adianta ao que vai. “É um bocadinho uma prova militar. Metade dos obstáculos são um bocadinho militares”, admite, de sorriso aberto.
Mafalda Nogueira continua a descrever o desenho do que vai enfrentar. “Rastejar, passar por valas, lama, cursos de água, às vezes temos de nadar e temos obstáculos naturais que a natureza nos proporciona”, conta.
A descoberta da modalidade num vídeo numa rede social
Apaixonada por este desporto não sai da radiografia daquilo que escolheu começar a fazer em 2023, fruto de uma descoberta casual “num vídeo numa rede social, acho que foi no Instagram”, recua.
Conta a história. “Aquilo acabou por ficar... gostei do que vi, umas pessoas todas sujas, cheias de lama, penduradas. Achei piada, mas ficou sem efeito”, relembra.
A casualidade da construção de uma estrutura de OCR no Parque Desportivo Municipal de Mafra (onde conversámos com Mafalda Nogueira) pelo mesmo promotor despertou-lhe a curiosidade.
“Tinha o nome de Links Race, pesquisei, vi que havia uma prova e que podia encaixar no meu calendário e fui”, disse.
Viu, foi e venceu uma das provas (5 km), informação que lhe chegou já quando estava preparada para se ir embora. Não foi e começou a praticar a ORC no clube de Oeiras (OCR Portugal LAB Club) justificando a aquisição dos ténis de trail na véspera.
Regressa à explicações sobre a modalidade.
“O OCR não é só correr, não é só obstáculos, é uma simbiose entre as duas”
“O OCR não é só correr, não é só obstáculos, é uma simbiose entre as duas”, confidencia a antiga praticante de basquetebol, judo e ténis.
O desporto faz parte do ADN da pequena Mafalda, mas desengane-se quem pense que o OCR “exige só uma condição física muito desenvolvida e treinada”, regista.
"É preciso ter muita resiliência para completar uma prova de OCR com tantos obstáculos pelo meio"
É, igualmente, preciso “ter uma cabeça muito treinada, uma condição mental muito forte, porque é preciso ter muita resiliência para completar uma prova de OCR com tantos obstáculos pelo meio”, assevera.
A atleta de Mafra é bi-Campeã Nacional 2024 e 2025 e campeã do Mundo 2024 OCR World Championships 2024, 15kms, (na categoria entre os 18-24 anos), e vice-campeã do Mundo OCR World Championships 2024, 3kms (dos 13-19), na Califórnia, Mammothe Lakes (Estados Unidos da América), títulos mundiais a merecerem um parágrafo contado mais à frente.

Atira-se, na conversa, de corpo feito ao campeonato da Europa. Tal como os restantes atletas recebeu o menu de obstáculos a encontrar no Jamor quase em cima do acontecimento. “Soubemos três semanas antes do Europeu”, revela.
Tal como em todas as provas, as páginas sagradas do rulebook desvendam o que vão enfrentar”. É nesse livro que estão escritas “todas as regras”, onde “o atleta se informa” e visualiza o “que pode ou não fazer”, porque, “às vezes, o mesmo obstáculo pode ter várias regras”, decifra.
“Na verdade, estou sempre a treinar”
Apesar da curta antecedência, Mafalda Nogueira sacode eventuais dificuldades na preparação.
“Mesmo sabendo o rulebook duas semanas antes, muitas das vezes não conseguimos treinar exatamente os obstáculos. Não temos acesso àquela parede, àquela pega de suspensão”, adianta. “Mas o treino que fazemos anteriormente consegue-se adaptar e consegue ter estímulos semelhantes ao que depois apanhamos nas provas”, considera.
“Na verdade, estou sempre a treinar”, revela. “As provas que fiz e a preparação feita serviram para preparar o Europeu, o meu calendário foi pensado um bocadinho em escolher provas específicas que servissem de preparação para este Europeu”, assume.
O treino é “muito completo” e realizado “em vários clubes de Mafra”.
Num, treina OCR, “especificamente técnica de obstáculo”, noutro “corrida”, clube com o qual, “às vezes”, participa em “provas de trail para complemento do OCR”. Por fim, “numa box de crossfit” fez “treino específico de força para prevenir lesões”. A razão é simples: “andar suspenso tanto tempo exige um reforço maior”, antecipa.
Tudo embrulhado, “muitas das vezes” faz “treinos tridiários, bidiários, para conseguir encaixar todos os treinos”, expõe. “O tempo é escasso” e não lhe permite fazer mais algo que era preciso, tal como pilates, admite a também estudante de Nutrição.
"Gostava de levar o OCR longe, principalmente em Portugal que já começa a dar cartas"
A dedicação é idêntica ao profissionalismo. “Não sou, mas trabalho para ser”, graceja.
“Gostava de levar o OCR longe, principalmente em Portugal que já começa a dar cartas, mas comparativamente com os outros países, ainda lhe falta um bocadinho para desenvolver e gostava de fazer parte disso”, confessa a atleta responsável por ter aberto a porta da corrida de obstáculos no Grupo Recreativo Gonçalvinhense, que hoje conta com “10 federados” e “20 atletas inscritos”, enumera.
“Gosto de andar pendurada”
Para o Europeu, a realizar no Jamor, Mafalda Nogueira vai participar em cinco provas, em quatro dias. “É algo que não é muito comum, não sei se já aconteceu. Normalmente participam em um ou duas, três, no máximo”, reconhece.
“Acabei por ser selecionada para as provas todas, por ser considerada a portuguesa mais preparada para participar em todas elas. Aceitei o desafio, não vai ser fácil em quatro dias fazer tanta prova, o cansaço vai acumular um bocadinho”, prevê.
O naipe é diversificado. A aposta recairá num par delas. “Há umas que sei que tenho mais oportunidades e vou focar-me mais: os 3km e os 15km a nível individual”, aponta. “E depois darei tudo para ajudar as equipas, que são as outras duas provas”, avança.
Resta os 100m individual, a pista de obstáculos. “É uma prova onde ainda não me sinto totalmente preparada, porque a Federação Portuguesa adquiriu essa pista muito recentemente para o Campeonato Nacional e não temos acesso para treinar nela e sem essa pista para treinar acaba por ser difícil”, lamenta.
Lamentos à parte, a atleta de 19 anos explora a sua maior aptidão e paixão. “Gosto de andar pendurada”, confessa, porque foram as provas de suspensão “que me puxou para esta modalidade”, acrescenta.

A razão da preferência prende-se com os obstáculos. “Têm umas pegas mais desafiantes e normalmente, quando as apanho, sei que não vão ser fáceis”, refere.
A baixa estatura e leveza de peso voltam a entrar na equação no equilíbrio nas alturas. Ajuda ou contratempo? “Depende, depende”, responde.
“Porque temos suspensão alta e suspensão baixinha, obstáculos até à altura da cintura a que se chamam low rig. Esses, para mim, são uma grande vantagem, sou pequenina, não toco com os pés no chão, não preciso de me encolher muito”, afirma.
“Nos obstáculos mais altos, posso eventualmente ter algum problema na envergadura de braços, quando as pegas estão muito longe, mas não creio que isso seja uma limitação”, assinala.
Em suma, embora sinta que a baixa estatura possa ser “um bocadinho limitação”, assina por baixo a máxima do “chegamos onde os outros chegam”. Com maior ou menor dificuldade.
“Talvez, nas paredes ou nas rampas que são mais altas, as pessoas mais altas chegam lá mais rápido. Tenho de espernear um bocadinho mais para passar esses obstáculos”, dispara.
Dá um exemplo. “A rampa final dos 100 metros, em que se toca o botão, é algo que tenho de treinar”, mas também é algo que “não tenho acesso para treinar”, recorda.
Um mundial na Suécia e uma prova Spartan em Abu Dhabi no horizonte
Sétima classificada, em dupla com João Pedroso, na Red Bull Ibiza Royal 2025 (a única equipa portuguesa na “corrida mais louca de obstáculos”, Mafalda Nogueira já tem calendário para o pós Europeu. O Campeonato do Mundo na Suécia (100m, 3km, 15km, organizado pela Federação Internacional de OCR), em Setembro, e o Campeonato do Mundo Spartan Beast (21kms), em Abu Dhabi, em novembro.
Para o fim deixa uma consideração sobre os meandros do OCR e as linhas com que se coze esta modalidade que ainda não é olímpica. Altura de explicar o título mundial.
“Temos uma Federação Internacional, mas depois temos uma organização muito grande que organiza provas também de dimensão muito grande”, introduz.
Continua. “Na verdade, o ano passado houve dois mundiais. Um organizado pela Federação Internacional, na Costa Rica mas que teve pouco adesão por parte dos atletas, por ser uma prova dispendiosa para ir. E, outro, de uma outra organização, em conjunto com a Spartan, organizou outro mundial, e foi a que fui”.
“Foi um pouco estranho, aconteceram dois mundiais e tivemos dois campeões do mundo. Fui vice-campeã nos Estados Unidos, na Costa Rica não sei quem foi”, sorri, despedindo-se porque o corpo e o tempo chamava pelo treino no Parque Desportivo de Mafra.

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